A menina dos
porquês e que precisaria de dois caixões ao morrer, um
só para sua língua, como dizia sua mãe, chegou bem
longe. A cigana Mirian Stanescon, que já inspirou personagem de
novela, hoje comemora a conquista de um dia nacional para seu povo, uma
cartilha com seus direitos e o pagamento de uma promessa: entregou nas
mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva uma imagem
da santa Sara Kali, a padroeira dos ciganos.
Nesse mesmo dia, sua presença em Brasília, na
cerimônia de desincopatilização dos ministros,
chamou a atenção por um aperto de mãos flagrado
por fotógrafos com a ex-ministra-chefe da Casa Civil e candidata
à Presidência pelo PT, Dilma Rousseff. A cigana vestia um
traje típico bordado em dourado e com pequenas flores vermelhas,
rompendo a sobriedade dos ternos e gravatas predominantes.
Não esquece o carinho com que foi recebida pelo presidente ao
entregar a imagem que ela pintou. “Meu Deus, uma ciganinha de
barraca recebida pelo poder máximo do nosso país, com
maior respeito”, diz a cigana que viveu até os 12 anos em
uma barraca na região de Nova Iguaçu.
Mirian, ou Rorarni (como os ciganos mais velhos a chamam), não
quer falar sobre previsões políticas. Ela assume, no
entanto, que vai lutar para Dilma ganhar. “Até por
respeito ao presidente Lula, pela gamação que eu tenho
pelo presidente. Eu tenho gratidão por essa mulher
também. Foi ela quem assinou o decreto. Acha que eu vou
trabalhar para quem?”, afirma, referindo-se ao decreto de 2006
que criou o Dia Nacional do Cigano (24 de maio), assinado por Lula e a
então ministra-chefe da Casa Civil.
“É a primeira vez na história deste país que
um governo para e ouve as reivindicações do povo cigano.
Eu não tenho que ser apaixonada por este homem?”
RESPEITO
As reivindicações têm rendido seus frutos, mas a
língua afiada e destemida de Mirian não dá
trégua. “Há 12 anos ninguém acreditava que
este movimento daria certo” , disse este ano na festa do dia dos
ciganos na Praça Garota de Ipanema, no Arpoador, na zona sul do
Rio. E dispara: “Nunca gostei do termo tolerância. A gente
não pode dizer que tolera homossexual, judeu ou cigano. A gente
respeita, como Jesus respeitava.”
Assim, com a voz enrouquecida, iniciou seu discurso antes de
começar as orações em romanês e
abençoar os que estavam presentes, entre eles o ministro Eloy
Ferreira, da Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (Seppir).
No dia 24 de cada mês, Mirian lidera uma corrente de
oração pela paz mundial nesse mesmo lugar, chamado templo
oficial da santa Sara Kali na América Latina, cuja imagem
está em uma gruta natural. Advogada e integrante do Conselho
Nacional da Seppir, Mirian diz que conhece muitos politicos, mas que
não teve apadrinhamento nenhum. “Eu concorri com 119
instituições (para estar no conselho) e meu
currículo e da fundação da qual eu sou presidente
venceu e eu estou lá no conselho”, diz, referindo-se
à Fundação Santa Sara Kali. “Não devo
favor a nenhum político.”
Mirian reconhece que essa exposição tem um preço a
ser pago, que nem sempre ela agradou nem agradará a todos, mesmo
entre os ciganos, até por ser mulher. Em seu livro “Lila
Romai” (Cartas Ciganas), ela diz que, durante toda sua vida,
ouviu de seu povo que tinha muitas virtudes, mas que carregaria para
sempre o “defeito” de ser mulher. “No entanto, jamais
considerei o fato de ser mulher como defeito, não me calei e
muito menos me isolei”, escreveu ela, que faz questão de
dizer que foi a primeira mulher cigana a se formar em uma universidade
no Brasil.
“Eu quero que fique nos anais da história que foi uma
mulher cigana que fez as propostas [aprovadas em conferência de
direitos humanos e igualdade racial], que foi para a tribuna, que deu a
cara a tapa. E tem muita ciganinha para vir atrás. Eu quero ver
centenas de doutoras, centenas de médicas”, diz.
Além de ter sido uma “menina dos porquês”,
conta que era bisbilhoteira e era repreendida por querer se meter em
brincadeiras de meninos. “Mas eu estava me preparando,
sabe?” Hoje, aos 62 anos, diz que muitas vezes precisou ter
atitude de “macho” para chegar onde chegou. “Minha
vó me ensinou que um líder para ser líder tem que
ter pulso forte, senão ele quebra os dedos e torce o pulso. Para
liderar, tem a hora em que você tem que apertar, senão
nego te aperta ou então ele vence.”
Sua próxima batalha, que acredita ser a última, é
conseguir o direito à inviolabilidade das barracas dos ciganos,
assim como são as residências dos “gajes”
(não-ciganos). “A casa do cigano é a barraca,
então é justo que, se a polícia vai entrar
lá, tem que entrar com um mandado. Não dá para ver
as atrocidades que a polícia faz com meu povo, de entrar sem
mandado, de maltratar as mulheres.”
Não se sabe ao certo o número de ciganos que há no
país, estima-se entre 800 mil e 1 milhão. Mas ela
acredita que há muito mais, porque muitos ainda temem o
preconceito e não assumem. “Nós tivemos um
presidente cigano que morreu sem dizer que era cigano. E, no entanto,
cansou de deitar no colinho da minha mãe em Nova
Iguaçu”, lembra, referindo-se a Juscelino Kubitschek.
Muitos dos ciganos no país já estão
sedentarizados, mas há ainda os que vivem como nômades.
São sete clãs no país: Kalderash, Moldowaia,
Sibiaia, Roraranê, Lovaria, Mathiwia e Kalê. No Norte do
país, há alguns em situação
“deprimente”, segundo Mirian, que é Kalderash.
Em sua caravana pelo Brasil ela já visitou 18 estados, levando a
cartilha que elaborou, a qual acabou sendo gravada em CD com a voz de
uma de suas filhas, pois muitos ciganos reclamavam que não
tinham como ler por serem analfabetos.
ÀS SEXTAS, CARTOMANTE
Mas o mundo desta cigana não se limita à batalha contra o
abandono e discriminação, há também um
espaço para a magia. Ela diz que de segunda-feira a quinta
é doutora, mas na sexta é cartomante.
“Desfaço qualquer olho grande, qualquer magia, qualquer
feitiço.”
Atende em casa, um amplo apartamento na zona sul do Rio, repleto de
lembranças de seus ancestrais. Com orgulho, aponta para os
brincos que aparecem em fotos nas orelhas de sua avó, sua
mãe e agora repousam em um copo com água sobre a mesa
onde lê as cartas. Quando vai ler a sorte eles têm que
estar ali. Ela também oferece consultas online pelo seu site.
As cartas usadas por Mirian foram idealizadas por ela, como manda a
tradição cigana, deixada de lado com o tempo.
“Antigamente os ciganos desenhavam as lâminas para as
ciganas lerem a sorte. Com essa história de comercializar os
tarôs e as cartas, ficaram vagabundos. Vão lá e
compram pronto.”
Com toda essa trajetória, as batalhas de Mirian não
pararam por aí. Ela não gosta de falar sobre o assunto,
mas traz no currículo uma liminar, que acabou sendo cassada,
contra a TV Globo. A disputa foi por causa da personagem Dara de
“Explode Coração” (1995-6), escrita por
Glória Perez. A personagem Dara, inspirada em Mirian,
representava uma jovem cigana que se orgulha de suas origens, mas se
recusava a ficar presa às tradições, entre elas de
manter a virgindade. Sentindo que aquilo era uma traição
ao seu povo, a cigana Mirian entrou em ação.
“Como ia ficar? Iria parecer para meu povo que eu também
os tinha ludibriado? Duas mulheres que ficaram de vigília na
minha noite (de núpcias) haviam morrido, mas três estavam
vivas. E aí, significa que eu fiz as três de
palhaças?”, relembra ainda indignada.
Miriam acredita que essa tradição não mudou, que
ainda é respeitada por seu povo. “A virgindade é
uma coisa muito séria, porque até na própria magia
há certas simpatias que só moça virgem pode
fazer”, explica. “Limpar o santo, por exemplo. Só
moça virgem pode fazer. Acha que alguém é besta de
ser mulher e tocar a mão em santo?”
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